Folhetim | Benvinda – Uma História de Emigração (3º Episódio)

FOLHETIM | Uma rubrica de Licínia Quitério

 

BENVINDA – Uma História de Emigração

3º. Episódio

Quantos dias foram os da viagem por essa Espanha fora é o que Benvinda não sabe contar porque não foram dias de vida verdadeira, tão somente dias de passagem por terras ora ardentes ora gélidas, a fugirem dos povoados, quantas vezes por chão mal pisado, como se fosse caminho. Benvinda, Bento, assim se chama o seu homem, e os outros. Talvez fossem uns dez, apinhados nos bancos de tábua, na parte da carrinha que devia transportar mercadorias e ali levava gente, que nem gado, pensava Benvinda, para não pensar no estupor que ia a seu lado e roçava a perna na dela, e ela aflita, com medo que Bento desse por isso e havia de ser uma desgraça, e ela calada até se lembrar do alfinete-de-ama com que fechava o saquito das notas por baixo do avental e o espetar o mais fundo que pôde na coxa do malandro que soltou um urro. O que foi, o que foi, era o que todos perguntavam e ele, quando conseguiu acalmar a dor, não foi nada, não se assustem, é uma pontada antiga que me ferra como cão danado, já passou, veja lá, homem, e Benvinda a dizer, se lhe der outra vez a dor é melhor não gritar senão ainda temos a guarda atrás de nós, pois, desculpem, desculpem, gemia o grande filho de um cabrão.

– Não dormi um ror de noites, eu era lá capaz de pregar olho naquela desgraça de caminho e também lhe digo que horas houve em que senti vontade de voltar para trás, fosse como fosse. Só pensava nos meus filhos, se ao menos os pudesse ver. Os sustos antes de chegarmos a Hendaia foram tantos que nem lhe conto. Até de bois bravos tivemos de fugir, sem tempo para arrebanhar o farnel que lá ficou pelo campo. O que vale é que eu era nova, corria muito, se fosse hoje bem pendurada tinha ficado nos cornos dum bicho. Ainda agora não posso ver um touro nem na televisão.

Quando por fim chegaram perto de Hendaia, por serras e descaminhos, os corpos doridos dos solavancos da carripana, o condutor disse que a partir dali era por conta deles. Sempre a direito, haviam de chegar à estação dos comboios. Lá havia de estar uma camioneta verde que dizia “Transports Gaudêncio”, conforme escrito no papel que entregou ao único que sabia ler, o João da Mata. Que falassem baixo e pouco, para não perceberem que eram portugueses, antes que houvesse chatice com os franceses que não eram flor que se cheirasse. A viagem e o susto tinham-lhes dado, no entanto, um ar de maltrapilhos, marca visível da sua condição e situação. Habituados estavam os habitantes da cidade fronteiriça à chegada frequente daqueles bandos de homens e mulheres, vestidos de escuro, com trouxas e cabazes, de olhares assustados e perdidos. Sabiam que vinham a fugir da fome nos campos pobres do Portugal do tirano Salazar. Não raro acontecia acolherem-nos, darem-lhes guarida, descanso e comida.

 

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